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13/03/2024

A voz da tia Nazira

Para comemorar o Dia Nacional da Comunidade Árabe, celebrado anualmente em 25 de março, Diogo Bercito escreve sobre a nostalgia vivida pelos descendentes de árabes no Brasil

Outro dia, viajando pelo interior de São Paulo para entrevistar descendentes de árabes, me deparei com uma história bonita. Marcia e Elias Gibran, que me receberam em Araraquara, contaram sobre as fitas cassete que sua tia Nazira enviava da Síria aos familiares no Brasil para que eles pudessem ouvir sua voz.

É uma narrativa delicada, que reconto aqui por ocasião do Dia Nacional da Comunidade Árabe, celebrado todo 25 de março no Brasil. Em vez de falar das conquistas da colônia árabe, neste ano quero relembrar que a imigração produz também uma espécie de saudade que nunca se satisfaz.

Essa saudade é expressa pela palavra árabe ghurba, que indica o sentimento de estar fora de lugar, de não pertencer. Mais do que na caixa de madeira nas costas dos mascates, é na ghurba que tenho pensado neste mês.

*

Jabbour Farah Georges e Sadika Saoud deixaram suas terras em 1951. Vinham de Al-Hawash, um pequeno vilarejo de terreno ondulado no noroeste da Síria. O casal queria recomeçar a vida no interior paulista, onde a economia do café — o ouro vermelho — tinha plantado riquezas.

O plano de Jabbour e Sadika era trazer os quatro filhos consigo: Nazira, Jamile, Sued e Elias. Só que a primogênita, Nazira, de dezessete anos, já estava noiva àquelas alturas. Desesperado com a partida, o pretendente caminhou da cidade de Homs até o vilarejo de Al-Hawash para implorar pela sua permanência.

Uma triste cena. Primeiro, o rapaz andando uns cinquenta quilômetros a pé. Depois, a negociação com os sogros. Então, Sadika aos prantos, dizendo que não deixaria a filha para trás. Por fim, a decisão de viajar sem Nazira. Tomaram o avião que os levou da Síria para um distante Brasil.

Jabbour, Sadika e os três outros filhos chegaram a Novo Horizonte e se instalaram ali. A cidade tinha uma numerosa e influente colônia árabe naquela época. Foram felizes, mas Nazira era uma ausência presente na casa da família. Pensavam nela e no que tinha sido da sua vida na Síria.

Trocavam cartas, sim, mas os envelopes levavam meses para cruzar os mares — e carregavam pouca informação, espremida entre as linhas. “Quando chegava uma, minha mãe beijava as letras”, lembra-se Jamile, irmã de Nazira, que viveu aqueles anos de saudade em Novo Horizonte.

Sadika não sentia falta só da filha Nazira. Tinha imigrado também sem sua mãe Helena. Tanto que, quando Nabiha, uma vizinha de Novo Horizonte viajou para o Líbano para visitar a própria família, Sadika lhe pediu que fosse à Síria procurar sua mãezinha.

A amiga Nabiha esticou a viagem, passou pelo vilarejo, que ficava perto do Líbano, e encontrou a mãe de Sadika. Trocaram informações sobre quem tinha partido e quem tinha ficado. Na despedida, Helena cortou uma mecha de cabelo e lhe entregou: “Dê para minha filha como prova de que eu ainda estou viva”.

Em 1972, duas décadas depois da despedida no aeroporto, Sadika conseguiu ir para a Síria ver a filha Nazira. A viagem foi um presente de um de seus genros. Seu marido Jabbour, porém, não teve esse privilégio. Morreu em 1977 sem poder revê-la.

Nazira veio ao Brasil em 1983 acompanhada de uma freira que estava a caminho de Catanduva, na região de Novo Horizonte. Um inesperado par. Ela aproveitou a companhia eclesiástica para se virar no país que não conhecia. Nazira nunca aprendeu a falar português, afinal.

A tecnologia havia avançado um bocado, desde os dias da troca de cartas. Depois daquela viagem, começaram uma nova tradição familiar. Enviavam fitas cassete entre Novo Horizonte e Al-Hawash com mensagens gravadas uns aos outros. Eles também trocavam fotografias.

Aquela era a única oportunidade que tinham de ouvir as vozes de seus amados. Como um feitiço, as fitas não transmitiam apenas recados. Podiam, também, ser tocadas quantas vezes fossem necessárias. Uma mesma mensagem insistida e rebobinada, perpetuando o som dos ausentes.

Marcia e Elias, sobrinhos de Nazira, se lembram da emoção da avó Sadika ao receber as fitinhas em Novo Horizonte. Ela chorava e conversava com a gravação como se a filha pudesse ouvi-la, na fita magnetizada. Na sala, toda a família se emocionava vendo a cena.

Nos anos 1990, a comunicação ficou ainda mais fácil entre o Brasil e a Síria. Conseguiam se telefonar. Se bem que ainda precisavam discar primeiro para Homs, a cidade grande mais próxima de Al-Hawash, e pedir para a telefonista transferir ao vilarejo. Isso sem falar no custo.

Mesmo longe, Nazira seguia perto. De forma tão intensa que, quando sua sobrinha Marcia abriu um restaurante de comida árabe em Araraquara, deu o nome da tia à Kombi de entregas. Está escrito em letras árabes, como uma homenagem à parente. É a versão motorizada da tia que ficou na Síria.

O restaurante se chama Marcia Gibran. Serve receitas da família, incluindo um saboroso charutinho de repolho. Vende também os clássicos, é claro: quibe, esfiha, homus, tabule. É um outro modo de perpetuar o legado dos que vieram antes, de quem a gente tem saudade.

Nazira segue na Síria. Hoje tem mais de noventa anos. Tem sete filhos, dezoito netos e dezoito bisnetos — por ora. Conversa quase todo dia com a irmã Jamile. Não por cartas ou fitas cassete, e sim chamadas de vídeo pelo WhatsApp. Sua voz chega firme neste 25 de março, atravessando o tempo.

Diogo Bercito

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